Manaus
concentra 58% dos mais de 10 mil casos de Covid-19 no Amazonas e vive colapso
na rede de saúde e no sistema funerário, com média de 140 enterros por dia.
Por BBC
O prefeito
de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), foi às lágrimas mais uma vez ao
descrever a situação dramática enfrentada pela maior cidade da Amazônia em meio
à pandemia do novo coronavírus.
"Todo
dia eu vejo mortes de pessoas que conheço", diz o tucano em entrevista à
BBC News Brasil. "Isso só não mexe com uma pessoa com o coração muito
ruim: impotência, falta de recursos, e morrendo gente, morrendo gente." Ele
prossegue, citando o episódio em que o filho de um homem que morreu pelo
coronavírus na capital amazonense atacou um dos profissionais responsáveis pelo
enterro. "O coveiro! O coveiro. Se tivesse que espancar, espancasse o
governador, espancasse a mim. Mas o coveiro..."
Segundo ele,
o número de mortes na cidade passou da média histórica de 20 a 30 enterros por
dia para um pico de 140. "Agora estamos estabilizados em uma média de 120,
o que é muito." O prefeito, no entanto, resiste à recomendação do
Ministério Público do Estado de implementação de um lockdown (confinamento
obrigatório), citando risco de caos social em Manaus.
"(Alguém)
joga uma pedra em alguém, começa um tiroteio com bala de borracha que pode
cegar alguém, começa a reação das pessoas, que vivem uma situação de desespero.
Algo que termina dando em tiro, dando em morte", avalia. Na última década,
as regiões Norte e Nordeste se revezaram no topo entre as áreas mais violentas
do Brasil.
Segundo o
Atlas da Violência do ano passado, feito com dados de 2017, Manaus era a nona
capital entre as líderes em taxas de homicídios no país - no topo estava
Fortaleza (CE), seguida de Rio Branco, Belém, Natal (RN), Salvador (BA), Maceió
(AL), Recife (PE) e Aracaju (SE).
Por outro
lado, cientistas em todo o mundo apontam o lockdown como medida eficaz e
necessária para a contenção da doença. Nesta semana, em meio ao processo de
reabertura parcial em países como Alemanha e Espanha, a epidemiologista da
Organização Mundial da Saúde Maria Van Kerkhove alertou para os riscos
associados ao relaxamento. "Se as medidas de lockdown forem levantadas abruptamente,
o vírus pode decolar."
A entrevista
acontece dias depois de Arthur Virgílio enviar vídeos pedindo ajuda a
personalidades internacionais - do presidente francês Emmanuel Macron ("se
ele tem toda essa preocupação com a Amazônia, deveria ajudar") à ativista
Greta Thunberg ("Pirralhos mentais a chamam de pirralha").
Segundo ele,
que diz não se "preocupar nem um pouco" com a reação do presidente
Jair Bolsonaro aos apelos, chegou a hora de perceber se as falas de líderes
internacionais sobre a região amazônica "são da boca para fora ou
sérias".
Leia a
seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News
Brasil - Uma das várias imagens que rodaram o mundo nesta crise é
especificamente de Manaus: aquelas valas comuns abertas em cemitérios da
cidade, aqueles tratores abrindo longas fileiras que posteriormente receberiam
vítimas do coronavírus especialmente. Qual é a situação do sistema funerário da
cidade neste momento?
Arthur
Virgílio Neto - Bem, agora está controlada. Nós estamos preparando um projeto
de memorial em nome de todas as pessoas ali enterradas. Estamos trabalhando a
separação, para cada uma ser identificada.
Mas os
hospitais têm cenas que também correram o mundo e é obvio que as pessoas
morreram e não tinha como enterrá-las. Porque nós subimos de 20 a 30 enterros
por dia para um pico de 140 e não sei quantos, e agora estamos estabilizados em
uma média de 120, o que é muito.
A gente sabe
que guerra é guerra. Nós temos uma guerra. Eu encaro o corona como uma guerra.
Nós tivemos que enterrar as pessoas. Nós não poderíamos simplesmente olhar um
para o outro, indecisos, como aconteceu em alguns hospitais, doentes juntos com
mortos. Nós não podíamos fazer isso.
Nós tínhamos
que enterrar. E a ordem que dei para o secretário de Limpeza Pública era que
procurasse dar um máximo de dignidade, mas que enterrasse com presteza, para
evitarmos que aquilo virasse algo muito pior.
BBC News
Brasil - O senhor falou da média normal de enterros na cidade, que variava
entre 20 e 30. Na terça-feira, 111 pessoas foram sepultadas, portanto pelo
menos 80 a mais que a média histórica. Destas 111 sepultadas, só 13 tiveram o
diagnóstico de covid-19. Dezenas foram enterradas com insuficiência
respiratória ou "causa desconhecida". Isso expõe uma possível
subnotificação brutal na cidade.
Virgílio
Neto - Quando eu vejo insuficiência respiratória grave, eu leio covid. Quando
vejo causas não identificadas, eu não rio porque não é hora de rir, mas…
Eu estou no
hospital, aí eu morri e ninguém sabe por que eu morri? É complicado. Eu leio
covid. Quando eu leio pneumonia nos boletins dos hospitais, eu leio covid. É
obvio que há subnotificação aqui e no Brasil.
BBC News
Brasil - O senhor gravou alguns vídeos com apelos para líderes mundiais. O que
o levou a pedir ajuda externa, uma vez que a gente espera que a ajuda venha de
dentro do próprio país. Por que apelar para fora?
Virgílio
Neto - Primeiro, porque não estava chegando nenhuma ajuda aqui. Começou agora,
depois da conversa com o ministro da Saúde, uma pessoa muito agradável, mas
veio uma coisa mínima, ínfima.
É uma região
de interesse planetário. Tem obviamente soberania nacional, mas é uma região de
interesse planetário. É hora desse interesse planetário se manifestar de
maneira concreta, não só fazendo cobrança.
Não sou do
tipo que vive de passado, não uso esses argumentos, que são muito parecidos com
os do presidente, que acha que devastar não faz mal. Eu sou contra garimpo no
Amazonas, contra agronegócio no Amazonas. Faça em outro lugar.
Sou a favor
de aproveitar o nosso banco genético, mantê-lo intacto, para trazer
prosperidade para o nosso povo. Precisamos, neste campo, também de cooperação
nacional e internacional. E se nós somos essa região importante, e se o
Amazonas é o cerne dessa região, eu não entendo como que, em uma hora de
aflição, na única vez em que o Estado pode alguma coisa, ele não é atendido.
Deve ser atendido. Ou o discurso dos líderes mundiais é da boca para fora, é
para fazer bonito perante a imprensa, ou esse discurso é sério.
Tudo o que
acontece de ruim para o povo do Amazonas se reflete na floresta, se reflete nos
rios, se reflete na contenção do aquecimento global.
Eu acabei de
falar com um jornal francês, uma das ajudas que eu espero claramente é a do
presidente Emmanuel Macron. Porque o discurso dele indica isso. Eu gosto de
juntar meu discurso e a minha prática. Se ele tem toda essa solidariedade e
preocupação inteligente com uma boa governança na Amazônia, deveria ajudar.
BBC News
Brasil - O apelo ao presidente Macron especificamente, aquele que foi o mais
enfático durante os incêndios, pode gerar desconforto com presidente
brasileiro. Bolsonaro se colocou frontalmente contra Macron, inclusive na
Assembleia-Geral da ONU. Como lida com esta tensão?
Virgílio
Neto - Vou te dizer como lido com o Bolsonaro. Bolsonaro todos os dias me cria
tensão. Quando ele briga com fulano, com beltrano, com não sei quem. Ele tem um
inimigo por dia. E eu crio de vez em quando problemas para ele quando respondo,
quando falou ou dou uma entrevista.
Isso aí não
me importa o mínimo. Eu não concordo com a política externa dele, não concordo
com o ministro de Relações Exteriores dele. Não é uma escolha sequer madura, se
tratava de um embaixador júnior. Então, não estou nem um pouco preocupado.
Então, eu me
dirigi ao G7, aos líderes principais. Me dirigi a eles. Se ajudarem, ajudaram,
se não ajudarem, é porque não compreendem a causa amazônica.
E por que a
Greta? O pessoal do Bolsonaro cai em cima de mim. Quando vejo a chamarem de
pirralha, eu já sei de onde vem.
BBC News
Brasil - De onde vem?
Virgílio
Neto - Bolsonaro. Do pessoal dele. Ser pirralho era tão bom, eu tenho tanta
saudade. Terrível é se eu fosse um pirralho governando o país, né?
E a Greta, a
quem chamam irresponsavelmente de pirralha, alguns pirralhos mentais a chamam
de pirralha, é quem está conversando conosco para chegarmos a alguma coisa
objetiva, alguma coisa prática.
A ajuda que
vier é bem-vinda. Precisamos de medicamentos, equipamentos de proteção
individual, tomógrafos.
BBC News
Brasil - O senhor já fez diversas críticas à condução do presidente Bolsonaro
nesta crise, disse que não pode esperar nada dele, e ao mesmo tempo se mostra
otimista em relação ao apoio dos países do G7. O senhor tem mais esperança na
ajuda vinda de fora do que na vinda de dentro?
Virgílio
Neto - É difícil mensurar o que representa uma declaração de uma Greta. É
difícil mensurar o que se passa na cabeça de uma pessoa que não conheço, mas
admiro à distância, que é o presidente Macron. É difícil mensurar o que se
passa na cabeça de um homem que poderia ter morrido de covid, o
primeiro-ministro (britânico) Boris Johnson.
Dos líderes
do G20 e dos países que se pode considerar expressivos, nós temos o único líder
que insiste em contradizer seu próprio Ministério da Saúde. Eu tenho esperanças
no ministro da Saúde, porque ele assumiu o compromisso comigo, acredito nele. E
também tem uma coisa, eu não vejo o presidente Jair Bolsonaro sentar e
despachar.
BBC News
Brasil - O Ministério Público entrou com uma ação civil pública pedindo que a
Prefeitura de Manaus e o governo do Estado decretassem lockdown. E o senhor
classificou a medida como extrema e arriscada. Mas o senhor já disse que viu
"cenas de terror" na capital, disse que defende medidas mais duras,
chegou a chorar ao narrar o que acontece na cidade. Quando se sugere uma medida
que vem sendo adotada em todo o mundo, nas principais capitais, o senhor diz
que é extremo. Não há contradição aí?
Virgílio
Neto - Não, você dá como única solução o lockdown. Mas eu penso, por exemplo,
numa rebeldia popular grande. Daqui a pouco tem eleição. Um oportunista joga
uma pedra… Eu já enfrentei uma ditadura. Apesar da minha idade, se tivesse
outra, e não vai ter, eu enfrentaria de novo. Eu sei o que é a repressão, ela
nem sempre depende do comandante. Dizia-se que na ditadura, não se tinha tanto
medo do general, tinha medo do guarda da esquina.
Então, joga
uma pedra em alguém, começa um tiroteio com bala de borracha, que pode cegar
alguém, começa a reação das pessoas, que vivem uma situação de desespero. Algo
que termina dando em tiro, dando em morte. Eu acho que é uma medida que deve
ser tomada em ultimíssimo grau, assim como nós fazemos com a entubação. Último
grau…
BBC News
Brasil - Prefeito, qual é o último grau, se o senhor já classificou a situação
como colapso na saúde pública, como filme de terror? O que mais precisa
acontecer?
Virgílio
Neto - A situação de horror é amenizada, se Deus quiser, com a chegada, que foi
uma intervenção benigna do ministro (Nelson) Teich e do general (Eduardo)
Pazuello, chegou muita gente para o governo do Estado. Se essas pessoas vão
resolver ou não, a gente vai ver daqui a pouco, se vai melhorar... Acho que
piorar não pode, deverá melhorar.
Nosso
hospital de campanha vai crescendo a cada momento. Estamos com organização nos
sepultamentos. Acabou aquela algazarra, aquela confusão. Aquela história de o
filho de alguém que morreu querer agredir o coveiro, que é o sujeito mais
exposto ao coronavírus.
BBC News
Brasil - Então o senhor enxerga no lockdown uma janela para uma possível convulsão
social, é isso?
Virgílio
Neto - Eu queria ter certeza de que não, para poder apoiar o lockdown. Eu falei
com todas as pessoas importantes nesse episódio do lockdown e não encontrei
segurança nenhuma. Nenhuma. Ninguém seguro que este é o melhor caminho.
Eu encontrei
pessoas que dizem que nós não temos instrumentos de repressão para sequer
reprimir de verdade uma rebeldia popular de grandes proporções. Então, eu olho
com responsabilidade o lockdown. O MP sugeriu, sugeriu. Vamos analisar, fazer
uma teleconferência e discutir. Mas, eu não posso declarar um lockdown sem ter
absoluta segurança de que preciso dele como a gente usa um respirador. A gente
usa o respirador mecânico só quando a gente acha que a pessoa vai morrer.
BBC News
Brasil - Agora, prefeito, não está um pouco em cima da hora, ou tarde para
saber se o lockdown faz sentido ou não e qual seria a alternativa?
Virgílio
Neto - Eu acabei de falar que chegou um reforço brutal para o governo do
Estado. Dois Boeings (com insumos).
Mas, quando
você se referiu ao episódio em que eu chorei na televisão. Eu sou um cara muito
sentimental. Muito sensível. E também não fui criado em uma família em que
homem não chora. Chora homem e chora mulher. Na minha família, sai na porrada
homem, sai na porrada mulher. Na minha família, a gente topa tudo. Tem de tudo
lá.
Eu explodi
sim porque você vê a pregação do "vai para a rua", e eu dizendo
"não vem para a rua", e o pessoal não me atende e vai para a rua. E
as pessoas morrem.
Diferentemente
do H1N1, que matou várias pessoas no mundo, eu não tenho de cabeça o nome de
nenhuma pessoa que tenha morrido de H1N1, uma pessoa próxima a mim. Eu não
lembro de ninguém. Hoje, todo dia eu vejo mortes de pessoas que conheço. Ou
pessoas humildes dos bairros, cujos nomes eu identifico, ou pessoas ricas que
eu conheço também, pessoas de classe média que eu conheço.
Todo santo
dia eu vejo isso. Isso só não mexe com uma pessoa com o coração muito ruim. Um
coração muito desonesto até, você não sentir uma coisa dessa. E a impotência, e
a falta de recursos, os recursos não vinham, e não vieram ainda, nós estamos
lutando com nossas próprias forças. E morrendo gente, morrendo gente.
Coveiro
quase espancado por filho de uma pessoa que ia ser enterrada. O coveiro! O
coveiro! Se tivesse que espancar, espancasse o governador, espancasse a mim,
mas o coveiro. Quer dizer, alguém não se condoer com isso, não se emocionar com
isso… Me parece que pelo menos é alguém diferente de mim.
Eu tenho uma
máxima: na minha vida, quando eu me emociono, eu choro. Na política, quem chora
é quem me enfrenta.
BBC News
Brasil - O senhor está no segundo mandato como prefeito, foi deputado várias
vezes, foi senador, foi ministro de Estado, representando também de alguma
maneira a sua região. Qual é sua autocrítica neste momento de colapso?
Virgílio
Neto - Eu não sei como começou o primeiro caso. Teoricamente, tinha que ser
detectado pela rede primária. Mas pode ter sido alguém que sentiu uma gripe, se
automedicou, contagiou a família toda. Eu não sei te contar essa história.
Uma autocrítica
que fiz ontem com o secretário de Saúde: nós não falávamos em dengue aqui desde
o final do primeiro ano do governo. Agora é época de dengue aqui e uma pessoa
acusou dengue outro dia.
Eu acho que
nós demos uma certa relaxada, na obsessão de enfrentar o corona, em relação a
outras doenças, endemias ou não. E a obsessão nossa ficou durante esse tempo
inteiro covid, covid, covid, e abrimos espaço para termos um caso de dengue.
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